Title: No Carrocel com Tom Waits
Source: Publico magazine (Portugal). April 26, 2002. By Miguel Francisco Cadete. �2000 P�BLICO Comunica��o Social, SA
Date: Flamingo Resort Hotel & Conference Center 2777 Fourth Street, Santa Rosa, CA. February/ March. Published: April 26, 2002
Keywords: Alice, Blood Money


 

No Carrocel Com Tom Waits

 

S�o duas hip�teses para renovar o fasc�nio por um compositor que escreve no fio da navalha, desafiando as leis da gravidade, sem desdenhar o divertimento: Tom Waits. "Alice" e "Blood Money", dois discos, s�o editados a 6 de Maio. Bandas sonoras de pe�as de Robert Wilson, sugerem imagens t�o fortes quanto os cen�rios, as personagens ou o universo on�rico do encenador. H� mesmo a evoca��o de uma taberna portuguesa.

Thomas Alan Waits tem 52 anos. Vive algures na Calif�rnia, apartado das grandes cidades, acompanhado pela mulher e por tr�s filhos. Simula uma exist�ncia pacata que, no entanto, vai sendo pontualmente tra�da pelas can��es que escreve. Estas n�o s�o sen�o pequenas pe�as de entretenimento destinadas a fascinar os que se enredam nos mist�rios da solid�o e do desespero. Situam-se, quase compulsivamente, entre a trag�dia e a farsa, como a banda sonora de um velho carrossel de feira - desengon�ado, empenado e � beira de abandonar a sua fun��o.

H� quem n�o prescinda dessas can��es, da mesma maneira que uma caixa de f�sforos e uma vela s�o indispens�veis quando falta a luz. � o caso de Robert Wilson, encenador, de Francis Ford Coppola, realizador, ou de um sem-n�mero de mortais fascinados por um compositor que decidiu escrever toda a sua obra no fio da navalha, como quem desafia as leis da gravidade, sem no entanto desdenhar as regras do divertimento. Mesmo que atroz e cruel, como acontecia nas feiras de Coney Island, ou numa das pizzarias de Los Angeles em que trabalhou dando consist�ncia a um passado que o ligava � "beat generation". Ou como em "Alice" e "Woyzeck", as pe�as de Robert Wilson com m�sica de Waits, � beira de serem editadas.

Desta vez desafiando as leis do mercado, Tom Waits edita os dois �lbuns no mesmo dia, 6 de Maio, numa az�fama pr�pria de quem n�o quer conhecer o fim da linha. Ainda assim, tem tempo para telefonar para Portugal e dizer de sua justi�a ou simplesmente o que lhe d� na gana, como numa das suas mais belas provoca��es: "I'll tell you all my secrets but I lie about my past."

como espect�culo de fantoches. "Sabes porque eles n�o fazem isso mais vezes? [editar dois discos no mesmo dia] Porque d� um trabalho desgra�ado. � preciso contratar os est�dios, os m�sicos, os artistas que fazem as capas, os engenheiros de som... N�o � nada f�cil at� porque a parada fica muito alta. Ainda assim parece-me que estes discos s�o singulares e pouco t�m a ver um com o outro se comparados. Estas can��es foram gravadas no Ver�o passado e n�o s�o nada mais do que um amontoado de temas. Cada uma delas tem um valor singular e portanto no seu conjunto n�o significam nada de especial. Gravei-as num est�dio mesmo � beira de minha casa e n�o tive tempo para fazer mais do que isso", dispara na sua voz roufenha, entre o s�rio e o divertido, a formalidade e o afectivo, como quem foge � pergunta �bvia sem deixar de querer ser simp�tico.

"Alice" e "Blood Money" (t�tulo do disco que serve de banda sonora a "Woyzeck") foram gravados no Ver�o passado, com recurso a alguns dos mais distintos m�sicos americanos. Como acontece desde os anos 80, Kathleen Brennan, a mulher de Waits, ficou respons�vel pela produ��o executiva, e os temas est�o na mesma linha seguida desde "Swordfishtrombones", quando Waits deixou de inventar muta��es gen�ticas da m�sica popular norte-americana para abrir a sua m�sica a uma pan�plia de refer�ncia que tanto est� relacionada com folk, blues e country como com m�sica �tnica, instrumentos bizarros ou a desconstru��o da �pera tal como preconizada por Robert Wilson. Houve j� quem tivesse descortinado uma rela��o destas can��es com o "cabaret" de Berlim nos tempos da Rep�blica de Weimar, mas para Tom Waits estas can��es s�o apenas, nas palavras de Tori Amos d'apr�s Stranglers, "strange little girls". Ainda que feitas segundo encomenda de Robert Wilson.

Conhecido por escolher a dedo os seus colaboradores, Robert Wilson trabalhou entre outros com William Burroughs ou David Byrne, tendo este �ltimo confessado ter ficado �s portas da loucura depois de algumas sess�es com o encenador de "Four Saints in Three Acts", pe�a que recentemente esteve em Lisboa. "� verdade, tamb�m estive perto de chegar l� (risos). O Robert Wilson � uma esp�cie de inventor, um m�dico neurologista ou um neurocirurgi�o. Tem uma personalidade fascinante, capaz de nos envolver em cada uma das suas produ��es. Um dia de trabalho com ele � fatigante e acabamos invariavelmente extenuados pela forma como somos integrados numa maquinaria gigantesca. Ele � um capit�o e tem qualidades de lideran�a incr�veis, a ponto de fazer rumar o barco � loucura. Confio em tudo aquilo que ele faz." O que leva a crer estarem na forja novos projectos comandados por Wilson, mesmo que Tom Waits admita que s� quer "pagar as rendas! Mas no teatro n�o h� dinheiro! O teatro � como os espect�culos de fantoches; n�o � como no cinema, em que eles reproduzem e distribuem o mesmo produto milhares de vezes. Eles s�o como um bando de ciganos que andam de terra em terra. Por ali n�o h� dinheiro".

Curiosamente, no cinema tamb�m n�o pagam melhor, pelo menos a Tom Waits. Ainda que seja autor de uma das bandas sonoras mais celebradas de sempre, como "Do Fundo do Cora��o", desde essa altura que o autor de "Rain Dogs" abandonou a composi��o de m�sica para filmes ou, pelo menos, de toda a m�sica de um filme.

"Fazer bandas sonoras d� um trabalh�o imenso. � preciso ficarmos acordados at� tarde e beber quantidades enormes de caf�. Al�m do mais, as bandas sonoras s� servem para resolver os filmes que s�o mal realizados. Quando a narrativa n�o funciona, somos n�s que temos de colar aquilo tudo. E n�s estamos na recta final do or�amento do produtor e, a bem dizer, tamb�m estamos na recta final da nossa paci�ncia! (risos)" N�o est� a falar da banda sonora de "Do Fundo do Cora��o", pois n�o? "N�o. Estou a falar de filmes com um or�amento reduzido e n�o daqueles com que me identifiquei. Para que me sinta recompensado, � necess�rio entrar definitivamente no universo do realizador, o que muitas vezes, admito, n�o aconteceu."

"Alice" e "Blood Money" tamb�m s�o, a seu jeito, bandas sonoras. N�o s� porque se destinam a musicar as pe�as de Wilson mas tamb�m porque sugerem imagens t�o fortes quanto os cen�rios, as personagens ou o universo on�rico de Wilson; ou as capas dos discos que agora servem de embalagem a esta m�sica. Em especial, a banda sonora de "Alice", que tamb�m esteve em Lisboa, no Centro Cultural de Bel�m, foi composta para uma orquestra de onde se destacava uma tocadora de theremin, que era nada mais do que a sobrinha-neta de Leon Theremin, o inventor do instrumento - esp�cie ancestral de sintetizador que se toca n�o se tocando nele. Curiosamente, Lydia Kavina n�o participou nas sess�es de grava��o de "Alice". "N�o conseguimos encontrar a rapariga. Ela estava muito longe, algures na R�ssia, e foi imposs�vel contact�-la para participar nas grava��es de 'Alice'. Mas foi muito interessante o primeiro contacto que mantive com ela. Chegou, abriu a caixa do seu theremin e deixou ver que todas as liga��es eram feitas com pe�as de latas de cerveja. Na R�ssia, eles n�o deitam nada para o lixo! (risos). A forma como ela toca o theremin � interessante porque, para l� do som, comp�e uma figura que se assemelha a uma pequena boneca. N�o a conseguimos encontrar, mas em substitui��o do theremin grav�mos com um violino stroh, que � uma esp�cie de violino a que foi acrescentada uma corneta. Foi inventado no s�culo XIX, de forma a que os violinistas pudessem competir com os naipes de metais no fosso da orquestra."

m�sica e insectos. A sedu��o por instrumentos pouco comuns levou Tom Waits a escrever o pref�cio de "Polyphones", um livro dedicado ao assunto que revelava uma paix�o que Waits liga �quela que nutre por insectos. "Interesso-me por esses instrumentos da mesma maneira que me interesso por insectos, especialmente por aranhas. As aranhas que constroem a sua teia..." Tal como William Burroughs? "Bem, o William Burroughs que eu conheci era especialista em cobras. Em cobras e em armas. Era um 'expert' na mat�ria e tinha uma colec��o invej�vel."

Em Portugal, tamb�m h� aranhas, cobras e, sobretudo, moscas, como numa das can��es de "Blood Money", em que Tom Waits canta no seu estilo arrastado uma cena a decorrer numa taberna portuguesa:

"In a Portuguese Saloon / a fly is circling around / the room / You'll soon forget the / tune that you play / For that is the part / You throw away."

Mem�rias de uma visita que ocorreu quando da rodagem do filme "Na Pele do Urso", de Eduardo Guedes. "J� passei por a� numa ocasi�o, quando estivemos a rodar um filme. Foi j� h� muito tempo, mas recordo-me de ter adorado a minha estada em Portugal. Especialmente o facto de termos passado a vida em tabernas a ouvir fado. Deit�vamo-nos todos os dias muito tarde." O tema em causa, "The Part You Throw Away", desenvolve-se a partir de uma qualquer world-music sem paradeiro certo, mas nada garante que se trate de fado. "� bem poss�vel, mas apesar de eu conhecer algumas coisas de fado n�o identifico os seus cantores, at� porque os discos de fado n�o est�o dispon�veis nas lojas americanas. Mas percebo a ideia do fado: quando algu�m parte, interiorizamos a sua presen�a atrav�s da mem�ria."

A �nica estada de Tom Waits em Portugal, algures nos anos 80, n�o deu lugar concerto algum ("Ah sim, um dia destes isso h�-de acontecer"), mas inclui um epis�dio pr�prio de uma das suas hist�rias. "Fiquei instalado num local perto do mar e, certo dia, levei os meus filhos a brincar para a praia. Estava muito vento e eu vestia um casaco que despi para brincar. L� dentro tinha a carteira e, apesar de estar constantemente de vigia, roubaram-me tudo. Perdi o casaco, a carteira, todos os meus apontamentos. Dias mais tarde, quando j� estava em casa, recebi uma encomenda num pacote. Estava tudo l� dentro. Nem nas fotografias dos meus filhos mexeram. Nunca soube quem fez isto e pensei que nunca iria ver de novo tudo aquilo que tinha perdido. De qualquer forma, gostava de agradecer. Muito obrigado."

Se ainda n�o esteve em Portugal para concertos, tamb�m n�o ser� desta que Tom Waits ir� pisar os palcos nacionais. Est� colocada de parte a hip�tese de qualquer digress�o depois da publica��o de "Alice" e "Blood Money". "N�o vou fazer uma digress�o depois da edi��o dos �lbuns. Talvez fa�a dois concertos-surpresa, um em Nova Iorque e outro em Los Angeles. Fazer uma digress�o completa n�o me vai ser poss�vel e viajar para a Europa est� fora de causa. N�o estou em condi��es para o fazer." O que ter� a ver com o estado de sa�de algo debilitado de Tom Waits, por ora desterrado das metr�poles, porque quer, segundo ele pr�prio, "encontrar alguma paz de esp�rito". Se nunca correspondeu ao estere�tipo do rock star, agora muito menos: "A seguir vou ver o meu correio. E depois preciso de receber cuidados m�dicos."

Nada que impe�a a edi��o de mais um �lbum nos tempos mais pr�ximos. "Vou fazer, muito brevemente, mais um disco, um �lbum s� com can��es antigas. S�o coisas que j� fiz mas que nunca foram editadas. H� coisas dos anos 80, dos anos 70... � material �rf�o que finalmente ir� ser publicado na Epitaph. Estou contente com eles. Tenho a impress�o que uma editora de punk-rock se adapta perfeitamente � minha obra. E h� outra coisa, eles t�m um tipo com mais de dois metros que me acompanha sempre. Onde quer que eu v�, sinto-me seguro." Afinal, o que teme Tom Waits?

"Alice" e "Blood Money" ser�o editados a 6 de Maio, distribu�dos pela M�sica Alternativa

Notes:

N/A